terça-feira, 4 de agosto de 2015

OS HERÓIS DA RESISTÊNCIA E A BISTECA RECHEADA


São José dos Campos, SP: quase 800 mil habitantes
São José dos Campos, a cidade onde moro atualmente, é uma cidade estruturalmente média, pequena se considerarmos que já morei em metrópoles como São Paulo e Curitiba, mas enorme se compararmos com Campos do Jordão, Cunha ou São Thomé das Letras, cidadezinhas onde também me fixei por, algumas mais outras menos, algum tempo. Cidades do interior ainda preservam costumes antigos, como, por exemplo, desejar um sincero "bom-dia" (ou "boa-tarde", ou "boa-noite") ao cruzar alguém pela rua, mesmo que desconhecido. Outro velho costume do interior: a caderneta de fiados nos pequenos comércios dos bairros. Quanto menor a cidade, maior costuma ser o valor da palavra, vale a negociação boca-a-boca, sem maiores garantias a não ser a própria palavra. Por isso, a palavra tem muito valor, e você não quer ganhar a fama de ser um “sem-palavra”.
Fiado: sem prestígio entre os comerciantes.
       Digo isso porque há alguns meses um grande supermercado abriu suas pesadas portas de alumínio em meu bairro, a apenas quatro quarteirões de distância da minha casa. Instalado há anos a duas quadras da minha residência, o senhor Yoshida não quis encarar a concorrência e vendeu sua pequena mercearia onde eu costumava comprar os produtos do dia a dia, como leite, cebola, alho e pão. Um pouco mais distante, a seis quarteirões daqui, o senhor João (que, assim como o senhor Yoshida e a maioria dos outros proprietários de mercadinhos do bairro, têm ascendência japonesa) ainda resiste, mesmo com preços um pouco mais altos do que no novo supermercado. Existem ainda outros pequenos comércios pelas redondezas, todos preocupados com a nova concorrência – e com razão.

Valorizar os pequenos mercados de sua região não é apenas uma questão de ajudar os amigos ou pessoas próximas a você. É uma questão de inteligência. No mercado do senhor João, ele e sua sempre sorridente família já sabem os produtos que eu gosto e Zezito, o amalucado açougueiro cearense, me chama pelo nome e me separa ótimos cortes de carne. Se eu estou procurando algo que não tenha naquele momento, conseguem para mim em "dois dias, no máximo!". Nunca precisei recorrer à caderneta de fiados, mas tenho certeza de que não seria um problema. Esqueceu a carteira? “Sem problemas, paga depois, né?!”. Tente fazer isso em algum Carrefour ou Pão de Açúcar da sua cidade.
Mercadinhos: simplicidade e simpatia em extinção
Não que os funcionários das grandes redes não sejam educados e solícitos, afinal eles recebem (ou deveriam receber) treinamento para lidar com o público e precisam ser simpáticos – o que nem sempre ocorre. Mas não é mesma coisa. Mais um exemplo: todo sábado, o senhor Olavo e sua esforçada equipe estacionam o caminhão frigorífico em uma rua paralela à minha (aliás, bem ao lado do novo mercado) e montam sua pequena venda de peixes frescos e frutos do mar. Eles também já conhecem minhas preferências e sempre têm algo novo no isopor que eu preciso provar. Eu, claro, sempre provo. Nem sempre compro, mas isso não os impede de fazer questão que eu sempre experimente. Às vezes, admito, compro mesmo sem muita vontade, apenas para manter o bom relacionamento com o melhor fornecedor de peixe da região.

É claro que adoro a comodidade de ter um grande mercado a poucos passos de casa, mas não deixei de “frequentar” os mercadinhos por perto, responsáveis (juntamente com a feira-livre) por termos em casa sempre alfaces e tomates recém-chegados da horta, frutas lindas e pedaços de carne cortados à nossa maneira. Eu os chamo de “Heróis da Resistência”, bravos sobreviventes de uma época em que a palavra era a maior fortuna de um homem. E a simpatia vinda deles não é fruto de treinamento, é educação mesmo.

E foi graças a um destes heróis que, dia desses, preparei uma das bistecas de porco mais saborosas que já provei, em minha modestíssima opinião. Zezito separou para mim meia dúzia de bistecas suínas, cortadas com dois dedos de espessura cada. Isso equivale à espessura de duas, três ou até quatro bistecas que encontramos normalmente nos açougues. Fiz um corte na lateral de cada bisteca, formando um “bolso”, tendo o osso como base. Temperei com sal, pimenta do reino moída na hora, alecrim, tomilho, limão e azeite, e deixei-as marinando na geladeira. Se você for preparar também, deixe a bisteca marinando na geladeira por, no mínimo, duas horas. Se puder deixar de um dia para o outro, melhor.
A bisteca alta: temperada e pronta para ir à geladeira

Preparei então o recheio: comecei colocando pedacinhos de bacon na frigideira (se o bacon estiver gorduroso, não precisa colocar mais nenhuma gordura, nem óleo nem azeite), cogumelos Paris, shitake, cenoura e cebola – tudo fatiado em tiras. O bom de casa de cozinheiro é que sempre tem alguma coisa pela cozinha que podemos usar, e resolvi incrementar o recheio com uvas-passas (hidratei-as em suco de laranja) e nozes trituradas. Frutas secas costumam ficar ótimas com carne de porco, então não tenha medo de se arriscar com tâmaras, damascos, etc. Procurei por pimenta dedo-de-moça mas, na falta destas, a pouco ardida pimenta biquinho foi a escolhida. Coloquei o recheio na bisteca e a fechei com palitos de dente, cortando suas pontas – assim, na hora de “selar” a carne, você consegue dourá-la perfeitamente de cada lado.
Parte dos recheios: cogumelos Paris e Shitake, uvas-passa, cebola e mandioquinha para o purê
 
Pimenta biquinho: não arde

O recheio pronto

A bisteca recheada e fechada com palitos

Dourei os dois lados na frigideira bem quente. Isso feito, transferi a carne para uma assadeira, acomodei pequenos pedaços de manteiga sobre ela e a cobri com papel alumínio. Coloquei então a assadeira no forno pré-aquecido a 220ºC e a deixei ali por quarenta minutos, tempo em que fui enlouquecendo pelo aroma que vinha da cozinha. Smbrar de virar a bisteca na metade desse tempo, melhor, mas não é necessário. Como acompanhamento, fiz o básico: purê de batata-Baroa. Adoro. Com o saboroso líquido que ficou na assadeira, você ainda pode fazer um molho para sua bisteca! Basta colocá-lo na mesma frigideira onde você selou a carne e deixe reduzir um pouco. Pode agregar outros sabores, como mostarda, molho-inglês ou shoyu. Tente. Experimente.
Sele a carne. Não lave a frigideira: separe-a para preparar o molho depois
 
Um pouco de manteiga sobre a carne, cubra com alumínio e coloque no forno
 
A bisteca pronta para ser devorada
 
Bom apetite!
Espero que você tenha gostado desta receita e, melhor ainda, que a prepare e sirva um banquete aos seus amigos e entes queridos. E procure valorizar os produtores e comerciantes de sua região, procure conhecê-los, ouça suas histórias e compartilhe suas receitas com eles. Porque você pode ter certeza de que eles terão o maior o prazer em compartilhar com você as receitas de suas famílias. E, de quebra, você ainda pode conseguir acesso à tão desejada "caderneta de fiados". Bom apetite!