_Pedala,
Robinho!
O
termo acima ficou conhecido graças à uma incrível jogada de habilidade do
jogador Robinho, então uma promessa do Santos Futebol Clube, quando, ao passar
o pé por cima da bola, sem, contudo, tocá-la, confundia os adversários em sua
rota certeira rumo ao gol. Era uma jogada mágica, plasticamente linda, desconcertante
para seus marcadores. Na segunda partida da final do Campeonato Brasileiro de
2002, Robinho deu oito (oito!) pedaladas diante do zagueiro corintiano Rogério
antes de sofrer o pênalti que ele mesmo converteria em gol, abrindo o placar
(3x2) que daria o título de Campeão Brasileiro daquele ano ao Santos.
Infelizmente
o termo pedalada hoje ganhou um sentido pejorativo, algo feito para enganar,
falsificar, iludir, ludibriar, graças às manobras fiscais praticadas pelo nosso
deszeloso (não adianta, corretor do Word, eu não vou corrigir “deszeloso”) governo
para camuflar o real estado – ridículo, pífio, deplorável e temeroso – de nossa
economia.
Na gastronomia também precisamos estar sempre
atentos às pedaladas praticadas para tentar driblar nossos direitos, vide a
antiquíssima expressão “comprar gato por lebre”, o que, lamentavelmente, não é
tão incomum. Afinal, quantos de nós saberiam diferenciar uma carne limpa,
cortada e embalada para consumo? Vou citar aqui algumas das mais comuns
pedaladas gastronômicas usadas para tentar nos enganar.
PICANHA x COXÃO DURO
Prática
muito comum em nossos mercados e frigoríficos, um bom pedaço da picanha para o
churrasco que você compra tem grandes chances de ser, na verdade, coxão duro. O
problema é que não podemos definir o peso exato de uma picanha, apesar de
muitos afirmarem que acima de 900g já não é mais o corte desejado. Outros juram
que a picanha pode pesar de 1.200g até 1.600g. Bom, sinceramente, isso depende
do tamanho do boi, mais especificamente do tamanho do traseiro do boi. Então me
mostrem uma foto do boi vivo, antes do abate, ou então continuaremos reféns da
boa vontade e da boa índole de nossos açougueiros e comerciantes.
Até
mesmo em churrascarias rodízio a prática é comum: não é raro pedaços de coxão
duro serem colocados no espeto e fatiados como suculentas picanhas diante de
comensais babando de desejo por aqueles pedaços irresistíveis de carne. O sabor
pode até ser bom (bem preparado, qualquer
pedaço de carne fica ótimo!), mas você está pagando por algo que não está sendo
servido. Na dúvida, na hora de comprar, evite os pedaços com mais de 1,3kg,
desencane e seja feliz no seu churrasco.
RESTAURANTE POR QUILO
Fala
sério: você confia naquelas plaquinhas que indicam qual o peso do prato que
será descontado do peso do seu prato cheio de comida? O correto seria pesarmos
o prato vazio e depois o mesmo prato cheio. E o que dizer daquele dedinho
malvado, fazendo pesar um pouquinho mais a balança? Ou, quem sabe, um
barbantinho estratégico onde uma leve puxadinha para baixo no momento exato aumenta
os lucros do restaurante...Acha que isso não acontece? Fique esperto!
CONTA NO RESTAURANTE/BAR
Você
vai ao restaurante, pede um couvert, duas entradas, dois pratos principais e
duas sobremesas. E bebe dois sucos, uma água sem gás e dois cafezinhos. Ou
quinze cervejas. Pois saiba que a quantidade de cervejas ou de chopes
consumidos está direta e proporcionalmente ligada ao risco do valor da sua conta estar
com um “lamentável erro”. Para mais, sempre. E que só será um “lamentável erro”
se você perceber e reclamar, caso contrário passará batido.
O
número de comensais à mesa também é componente perigoso para o aparecimento de
itens mágicos na conta:
_Milk
Shake? Mas eu não pedi Milk Shake!
_O
senhor tem certeza de que nenhum dos outros trezentos e oitenta convidados
pediu?
_E
isso aqui? Isso aqui é a conta do açougue!
_Tem
razão, senhor, vou mandar descontar do valor. Foi um lamentável erro. Cafezinho?
Falando
nisso: certifique-se de que, ao retirar qualquer valor indevido da conta, o
valor dos 10% referentes ao serviço não
prestado seja também recalculado. O que nos leva à próxima Pedalada
Gastronômica:
10% DE SERVIÇO
Acredite:
ainda existem patrões inescrupulosos e sem caráter que não repassam os 10% cobrados
no valor final da conta destinados aos garçons. À propósito, acredite também:
sabe aquele dinheiro que você dá ao garçom e pede para entregar ao chef pela
excelente refeição servida? Nunca (deixe-me ser mais claro: NUNCA!)
chega em nossas mãos, desculpe. Garçons também podem ser inescrupulosos e sem
caráter.
COMIDA CONGELADA x COMIDA FRESCA x COMIDA ORGÂNICA
Está
lá no cardápio: “Todos os nossos produtos são frescos”. Daí você chama o
gerente e, em um rápido bate-papo, descobre que os peixes e frutos do mar são
entregues uma vez por semana. Quer dizer que o peixe entregue na quinta-feira
cedo será servido até o jantar da próxima quarta-feira, isso se for vendido e não ficar algum tempo
congelando no freezer. Frescos?!? Sério?!? E cabe aqui uma referência a uma
nova modalidade de Pedalada Gastronômica, a dos produtos orgânicos. Neste caso,
a pedalada é dupla: o produtor rural garante ao comerciante que o produto dele
é orgânico e o comerciante jura ao cliente que seu preço é mais alto pelo fato
do alimento ser livre de agrotóxicos ou de qualquer outro veneno. Jura?!? É
claro que existem meios de se certificar a procedência dos produtos, por isso
fique de olho nos selos de qualidade, compre de marcas em que você conhece e
confia (não acredite apenas nos comerciais de televisão...) e, sempre que
possível, conheça seus fornecedores.
ADULTERAÇÃO DE DATAS DE VALIDADE
Apesar
de perigosa e criminosa, a prática é comum. Os mercados exibem em suas estantes
pedaços cortados de frios, de carnes vermelhas, de frango, de porco. E colocam a
data de validade na embalagem, em etiquetas próprias. Nada mais fácil de ser
adulterado, certo? Dois dias depois, basta colocar outra etiqueta. Trata-se de crime
contra as relações de consumo. O crime é inafiançável e a pena vai de 2 a 5
anos de prisão.
Em
qualquer um dos casos citados, denuncie. Denuncie na polícia, no Procon, nas redes
sociais, nos sites de avaliação de estabelecimentos. Espalhe para os seus
amigos. Não deixe barato e não tenha medo de ser considerado “chato”. Chato é
ser enganado.
Nostálgico
dos tempos em que pedaladas ainda significavam algo feito com simplicidade,
desenvoltura e rapidez para solucionar uma situação, conto aqui uma genuína pedalada
gastronômica protagonizada por mim em um hotel de Campos do Jordão, São Paulo.
Fui
contratado pelo dono do hotel para servir um almoço para dez pessoas,
aproximadamente. Até aí, sem problemas. “Pode usar os produtos que temos na
câmara fria”, ele disse. Perfeito! Eu já havia trabalhado na cozinha de um
outro hotel do mesmo proprietário na mesma cidade, então sabia o que deveria
encontrar. O almoço seria servido às duas horas da tarde, então ele me pediu
que chegasse às nove. Ou às dez.
Cheguei
um pouco antes, por volta das sete horas. Na cozinha do hotel, apenas eu e uma
senhora que lavava os pratos e, aparentemente, limpava sozinha todo o salão do
restaurante do hotel. Um garçom chegaria minutos antes do almoço para servir os
convidados.
_Não
tem outro funcionário por aqui? Cozinheiros, ajudantes?– perguntei.
_Hoje
não, estão todos de folga. O hotel está vazio. – ela disse, exibindo
alegremente os dentes que ainda balançavam em sua boca.
Todos
de folga. Todos. Foi neste momento que o dono do hotel entrou na cozinha,
bocejando e logo tomando um gole do café que Dona Cirina, a amável e desdentada
senhora, havia preparado minutos antes para nós.
_Edu!
Chegou cedo! Que bom, porque preciso te dizer algumas coisas. Nossos convidados
hoje são o prefeito e a primeira-dama, o vice-prefeito e a esposa e mais alguns
secretários da cidade – e mais uma dúzia de puxa-sacos -, e eu espero realmente
poder impressioná-los. Ah, e não serão dez pessoas, serão umas vinte, acho.
Melhor cozinhar para trinta. Ah, a entrada, o almoço e os acompanhamentos podem
ser servidos no buffet, mas preciso que você faça sobremesas individuais, tudo
bem? Só mais uma coisa: não temos muita coisa na câmara fria, você precisa ir
ao mercado e comprar tudo. Pode ir com carro do hotel, mas não podemos gastar muito,
certo?
Certo.
Entrada, almoço e acompanhamentos para trinta pessoas, entre elas o prefeito, o
vice, os secretários e os respectivos puxa-sacos, trinta sobremesas
individuais, sem nenhum ajudante, sem produtos na cozinha e sem muito dinheiro para
gastar. O que poderia dar errado?
Eu
precisava de alguma ideia, e rápido. Naquele tempo ainda não havia internet ou,
se havia, ainda não era tão fácil acessá-la. Era necessário um computador e,
naquela cozinha, eu não tinha um computador. Mas eu tinha alguns livros que eu sempre
levava para trabalhos do tipo. E foi ali, num daqueles livros, que vi a chance
de me tornar Robinho por um dia, dar uma pedalada genial e marcar um golaço:
Boeuf Bourguignon!
Um
clássico francês, relativamente fácil de fazer, com nome pomposo – bem ao gosto
de nossos políticos – e que pode ser feito com um dos cortes de carne bovina
mais baratos do mercado: o músculo! Apesar do nome francês de difícil
pronúncia, o Boeuf Bourguignon nada mais é do que um ensopado onde a carne é
cozida lentamente no vinho tinto. Como tempo não era um ingrediente possível
naquele dia, precisaria apelar para a panela de pressão, o que, sinceramente,
não seria problema nenhum e me daria ainda mais certeza de que minha carne ficaria
super macia.
Escrevi
em um papel a lista de compras do prato principal, tendo em mente as palavras
do dono do hotel: “não podemos gastar muito, certo? ”. Alho, cebola, cenoura,
alho poró, batatas, cogumelos Paris (Champignons, mas não em conserva), farinha
de trigo, músculo bovino e bacon, porque você já deve ter ouvido a frase: “Tudo
que é bom fica melhor com bacon”. O ingrediente mais caro da lista de compras
seria o vinho tinto, mas, vejam só, a adega do hotel, ao contrário da câmera
fria, estava bem abastecida. Ótimo, porque eu adoro cozinhar com vinho e às
vezes até coloco um pouco na comida!
Brincadeiras
à parte, eu já havia decidido o cardápio. Para entrada, algo bem simples: salada
de folhas variadas, tomates cortados à francesa e um molho campanha (um
vinagrete) caprichado. O Boeuf Bourguignon seria o prato principal, acompanhado
de arroz branco e batatas assadas com ervas. Para a sobremesa decidi fazer um
musse de maracujá bem simples, rápido de preparar e muito gostoso. Primeira
missão cumprida: gastei pouco. Agora só faltava cozinhar tudo e arrebatar os
convidados.
Comecei
preparando as sobremesas e as coloquei na geladeira. Estariam perfeitas na hora
de servir. Com toda a cozinha à disposição, acendi quase todas as bocas de
fogão disponíveis, peguei meia dúzia de panelas e duas panelas de pressão e fiquei ali, dando voltas ao
redor do fogão, mexendo nas panelas, preparando tudo e de olho no tempo. As
batatas já estavam no forno, o arroz estava soltinho e saboroso, as folhas e
tomates lavados e cortados.
O
almoço correu sem percalços, apesar da correria. Dona Cirina foi um anjo
enviado por São Benedito (o padroeiro dos cozinheiros), que me ajudou a cortar
tudo e escreveu os displays do buffet
com uma caligrafia que não vemos mais hoje em dia, dando um destaque ainda mais
charmoso ao nome francês que, segundo ela, era um nome “metido à besta”. Ao
final da refeição, o dono hotel e o prefeito foram nos cumprimentar na cozinha,
encantados. O prefeito disse que já conhecia o prato, que o havia provado em
Paris, que o prato estava igualzinho, e blá
blá blá, e ti ti ti, mas tenho
certeza de que ninguém naquela mesa sabia que se tratava de músculo bovino cozido.
Gol. O que importava mesmo é que havia sido um sucesso, considerando-se o valor
da gorda caixinha deixada à mesa e que eu, claro, não vi a cor. Acontece que a
“turma” das cozinhas de hotéis e restaurantes costuma se encontrar pelos bares
e assim fiquei sabendo a respeito da caixinha surrupiada. Eu não ia brigar com
o garçom daquele almoço, mas, quando o convidei para tomar umas cervejas no
boteco ele nem desconfiou que eu sumiria do local após uma bela quantidade de
garrafas abertas e porções devoradas com gosto. Gol. Agora sim eu estava me
sentindo o Robinho...
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