segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

SUA MAJESTADE, O BOI ou TODA CARNE É NOBRE

Amigos e amigas, parece que o pior já passou, mas ainda assim é um escândalo (pode escolher a palavra: assalto, roubalheira, sacanagem, abuso) o preço da carne nos supermercados. Quando eu comecei a escrever este blog, logo na primeira postagem, postei a foto de um canelonni de filé de mignon com uma observação de que você deveria fazê-lo, pois, além de muito saboroso, não pesava muito no bolso. Mas o quilo do filé mignon atingiu a estratosfera, então me vejo obrigado a dar alguma opção (bem) mais barata e, ainda assim, deliciosa.
O brasileiro, em geral, adora carne. Não é o seu caso?!? Tá bom, confesso: EU adoro carne. Me perdoem os vegetarianos e veganos, mas meus dentes caninos necessitam sentir o rasgar de uma carne para satisfazê-los, se possível acompanhada de um suculento, saboroso e vermelho sangue animal. Carne é proteína, e precisamos dela para mantermos nossos corpinhos em pé. Se você quer procurar alguma alternativa protéica à carne, tudo bem, faça-o. Eu entendo e respeito qualquer opção culinária, mas não abro mão da carne em meu cardápio.
Apesar desta paixão pela carne, não faz muito tempo que o brasileiro incluiu o gado em suas refeições cotidianas. Até por volta dos anos de 1920/1930, a carne de gado era muito difícil de ser encontrada pelas cozinheiras de nossas roças, razão pela qual não são muitas as receitas com carne bovina deixadas por elas. A razão para tal fato era que o gado, que vinha do Rio Grande do Sul ou do Nordeste, custava muito caro. Os grandes fazendeiros de São Paulo e aqui da região do Vale do Paraíba possuíam pequenos rebanhos, mas as prioridades para o gado eram outras do que servir simplesmente de alimento. As fêmeas serviam para procriar e dar leite, e os machos para puxar carros-de-boi. Como muitas fazendas da região chegavam a possuir vinte carros-de-boi puxados por quatro bois cada um, percebe-se a importância econômica do boi.
Por esta razão, o gado abatido era constituído basicamente de vacas velhas, que não prestavam mais para procriação, com 15 ou 20 anos de idade. Até hoje o termo “carne de vaca” é usado de maneira pejorativa por este motivo. Os bois trabalhavam a vida inteira, e só eram abatidos quando não conseguiam mais cumprir esta função. Nos dois casos, bois e vacas, a carne era muito dura, tanto pela velhice como pelo esforço a que fora submetido a vida toda.
 
No século XIX até o início do século XX, comia-se muito a carne-seca, e o roceiro dizia que quando tinha carne de vaca fresca na mesa era “dia de rico”, apenas se dando a esse luxo no início da quaresma e nas festas de Fim de Ano. Quando a oferta de carne aumentou na região, o que se comia muito era o que chamavam de “espeto paleolítico”: pedaços de carne enfiados em um espeto e colocados para assar.
Cabe aqui contar um capítulo à parte na gastronomia caipira: a origem do “fogado” ou “afogado”, até hoje muito comum nas roças. Os fazendeiros matavam suas vacas para fazer a carne-seca, guardadas e conservadas no sal. As pernas e patas inteiras eram destinadas aos escravos, que as cortavam em pedaços e as colocavam em grandes panelas para cozinhar apenas com sal. Desta maneira, a carne ficava a noite toda “afogando” em fogo brando para amolecer. Depois de cozida, entrava o molho à base de urucum, alho, cheiro verde, além da alfavaca e hortelã pimenta, plantas que os negros sabiam que ajudavam na digestão. O prato não tinha gordura, apenas o mocotó e o tutano do osso, que lhe conferiam um sabor especial.
Com o aumento do rebanho de gado a partir de 1930, o fogado ganhou o interesse dos políticos por ocasião das eleições, quando era oferecido em troca de votos. Mas como eram muitos eleitores para comer, acabavam usando o boi quase inteiro, descaracterizando a receita original com o uso de carnes mais gordurosas e mais moles. Nas festas religiosas, onde se matavam até 30 bois para servir ao povo, novos elementos entraram na composição do prato, como a batata, o macarrão e a mandioca, dando origem a outro clássico caipira, que ganhou o nome de “Vaca Atolada”.
Vamos deixar a história um pouco de lado, e voltar aos dias atuais. Ainda hoje alguns cortes são classificados como “de primeira” e “de segunda”, criando uma classificação injusta para com algumas partes do boi. Todos admiram o filé-mignon, a picanha e a alcatra, relegando a um segundo plano outras partes, como o acém, a fraldinha e o músculo. Ora, nada mais injusto. O que seria justo dizer é que existem cozinheiros “de primeira” e “de segunda”, até mesmo “de quinta”. O que dizer da costela, que quando bem feita possui sabor e maciez inigualáveis? E do músculo, ingrediente original e essencial do clássico francês “Boeuf Bourguignon”? E o que faz da maminha assada na cerveja um prato menor do que um escalope de filé-mignon? Tudo é uma questão, portanto, de como cada carne deve ser preparada, pois cada corte possui um sabor único, merecedor de sua degustação e aprovação.

Quando fui ao mercado e levei um susto com o preço do filé-mignon, logo procurei uma alternativa para meus caninos sedentos: fraldinha! Um pedaço de mais um quilo de fraldinha custava o equivalente a um mediano medalhão da “nobre” carne. Juro! O modo de preparo? Simples: retirei o excesso de gordura, separei a carne em dois pedaços de pouco mais de meio quilo cada um (fotos 1 e 2), temperei com sal e pimenta-do-reino e “selei”-os em uma panela bem quente, para formar aquela “casquinha” crocante e dourada, cheia de sabor  (foto 3 - para os gastrônomos: lembram-se da reação de Maillard?).
foto 1

foto 2

foto 3

Feito isso, coloquei ambos os pedaços em uma panela de pressão (salvação de toda carne dura...) e cozinhei por meia hora com caldo (pronto) de costela. À parte, fiz um molho branco (molho bechamel: 30g de farinha de trigo, 30 g de manteiga. Deixe cozinhar a farinha um pouco, acrescente 300ml de leite -aos poucos- , misture e cozinhe em fogo baixo, até atingir uma consistência cremosa. Acerte o tempero com noz-moscada e sal) com pedaços de queijo gorgonzola e cubos de bacon. Depois de pronto, decore com salsinha e cebolinha picada. Simples e delicioso (foto 4 - desculpem a falta de nitidez...)! Vale dizer que os pedaços de carne diminuem de tamanho ao cozinhar, então não se assuste com os pedaços de 500g. Pronto! Pode acompanhar uma massa, uma salada ou o que você quiser. No meu caso, comi apenas a carne com o molho de gorgonzola sobre ele, sem acompanhamento algum. Nhac! Viva a carne!
foto 4

Satisfeitos meus instintos carnívoros, ainda havia sobrado metade da carne. Solução para o dia seguinte: desfiei a carne, esquentei o que restou do molho gorgonzola com extrato de tomate e fiz pimentões recheados. Tudo isso por muito menos que trezentos gramas de filé-mignon. Gostou? Então faça, prove e aprove!

Nenhum comentário:

Postar um comentário