quarta-feira, 28 de outubro de 2015

PEDALADAS GASTRONÔMICAS

_Pedala, Robinho!
O termo acima ficou conhecido graças à uma incrível jogada de habilidade do jogador Robinho, então uma promessa do Santos Futebol Clube, quando, ao passar o pé por cima da bola, sem, contudo, tocá-la, confundia os adversários em sua rota certeira rumo ao gol. Era uma jogada mágica, plasticamente linda, desconcertante para seus marcadores. Na segunda partida da final do Campeonato Brasileiro de 2002, Robinho deu oito (oito!) pedaladas diante do zagueiro corintiano Rogério antes de sofrer o pênalti que ele mesmo converteria em gol, abrindo o placar (3x2) que daria o título de Campeão Brasileiro daquele ano ao Santos.
Infelizmente o termo pedalada hoje ganhou um sentido pejorativo, algo feito para enganar, falsificar, iludir, ludibriar, graças às manobras fiscais praticadas pelo nosso deszeloso (não adianta, corretor do Word, eu não vou corrigir “deszeloso”) governo para camuflar o real estado – ridículo, pífio, deplorável e temeroso – de nossa economia.
 Na gastronomia também precisamos estar sempre atentos às pedaladas praticadas para tentar driblar nossos direitos, vide a antiquíssima expressão “comprar gato por lebre”, o que, lamentavelmente, não é tão incomum. Afinal, quantos de nós saberiam diferenciar uma carne limpa, cortada e embalada para consumo? Vou citar aqui algumas das mais comuns pedaladas gastronômicas usadas para tentar nos enganar.

PICANHA x COXÃO DURO

Prática muito comum em nossos mercados e frigoríficos, um bom pedaço da picanha para o churrasco que você compra tem grandes chances de ser, na verdade, coxão duro. O problema é que não podemos definir o peso exato de uma picanha, apesar de muitos afirmarem que acima de 900g já não é mais o corte desejado. Outros juram que a picanha pode pesar de 1.200g até 1.600g. Bom, sinceramente, isso depende do tamanho do boi, mais especificamente do tamanho do traseiro do boi. Então me mostrem uma foto do boi vivo, antes do abate, ou então continuaremos reféns da boa vontade e da boa índole de nossos açougueiros e comerciantes.
Até mesmo em churrascarias rodízio a prática é comum: não é raro pedaços de coxão duro serem colocados no espeto e fatiados como suculentas picanhas diante de comensais babando de desejo por aqueles pedaços irresistíveis de carne. O sabor pode até ser bom (bem preparado, qualquer pedaço de carne fica ótimo!), mas você está pagando por algo que não está sendo servido. Na dúvida, na hora de comprar, evite os pedaços com mais de 1,3kg, desencane e seja feliz no seu churrasco.

RESTAURANTE POR QUILO

Fala sério: você confia naquelas plaquinhas que indicam qual o peso do prato que será descontado do peso do seu prato cheio de comida? O correto seria pesarmos o prato vazio e depois o mesmo prato cheio. E o que dizer daquele dedinho malvado, fazendo pesar um pouquinho mais a balança? Ou, quem sabe, um barbantinho estratégico onde uma leve puxadinha para baixo no momento exato aumenta os lucros do restaurante...Acha que isso não acontece? Fique esperto!

CONTA NO RESTAURANTE/BAR
Você vai ao restaurante, pede um couvert, duas entradas, dois pratos principais e duas sobremesas. E bebe dois sucos, uma água sem gás e dois cafezinhos. Ou quinze cervejas. Pois saiba que a quantidade de cervejas ou de chopes consumidos está direta e proporcionalmente ligada ao risco do valor da sua conta estar com um “lamentável erro”. Para mais, sempre. E que só será um “lamentável erro” se você perceber e reclamar, caso contrário passará batido.
O número de comensais à mesa também é componente perigoso para o aparecimento de itens mágicos na conta:
_Milk Shake? Mas eu não pedi Milk Shake!
_O senhor tem certeza de que nenhum dos outros trezentos e oitenta convidados pediu?
_E isso aqui? Isso aqui é a conta do açougue!
_Tem razão, senhor, vou mandar descontar do valor. Foi um lamentável erro. Cafezinho?
Falando nisso: certifique-se de que, ao retirar qualquer valor indevido da conta, o valor dos 10% referentes ao serviço não prestado seja também recalculado. O que nos leva à próxima Pedalada Gastronômica:

 10% DE SERVIÇO
Acredite: ainda existem patrões inescrupulosos e sem caráter que não repassam os 10% cobrados no valor final da conta destinados aos garçons. À propósito, acredite também: sabe aquele dinheiro que você dá ao garçom e pede para entregar ao chef pela excelente refeição servida? Nunca (deixe-me ser mais claro: NUNCA!) chega em nossas mãos, desculpe. Garçons também podem ser inescrupulosos e sem caráter.

COMIDA CONGELADA x COMIDA FRESCA x COMIDA ORGÂNICA

Está lá no cardápio: “Todos os nossos produtos são frescos”. Daí você chama o gerente e, em um rápido bate-papo, descobre que os peixes e frutos do mar são entregues uma vez por semana. Quer dizer que o peixe entregue na quinta-feira cedo será servido até o jantar da próxima quarta-feira, isso se for vendido e não ficar algum tempo congelando no freezer. Frescos?!? Sério?!? E cabe aqui uma referência a uma nova modalidade de Pedalada Gastronômica, a dos produtos orgânicos. Neste caso, a pedalada é dupla: o produtor rural garante ao comerciante que o produto dele é orgânico e o comerciante jura ao cliente que seu preço é mais alto pelo fato do alimento ser livre de agrotóxicos ou de qualquer outro veneno. Jura?!? É claro que existem meios de se certificar a procedência dos produtos, por isso fique de olho nos selos de qualidade, compre de marcas em que você conhece e confia (não acredite apenas nos comerciais de televisão...) e, sempre que possível, conheça seus fornecedores.

ADULTERAÇÃO DE DATAS DE VALIDADE

Apesar de perigosa e criminosa, a prática é comum. Os mercados exibem em suas estantes pedaços cortados de frios, de carnes vermelhas, de frango, de porco. E colocam a data de validade na embalagem, em etiquetas próprias. Nada mais fácil de ser adulterado, certo? Dois dias depois, basta colocar outra etiqueta. Trata-se de crime contra as relações de consumo. O crime é inafiançável e a pena vai de 2 a 5 anos de prisão.

Em qualquer um dos casos citados, denuncie. Denuncie na polícia, no Procon, nas redes sociais, nos sites de avaliação de estabelecimentos. Espalhe para os seus amigos. Não deixe barato e não tenha medo de ser considerado “chato”. Chato é ser enganado.
Nostálgico dos tempos em que pedaladas ainda significavam algo feito com simplicidade, desenvoltura e rapidez para solucionar uma situação, conto aqui uma genuína pedalada gastronômica protagonizada por mim em um hotel de Campos do Jordão, São Paulo.
Fui contratado pelo dono do hotel para servir um almoço para dez pessoas, aproximadamente. Até aí, sem problemas. “Pode usar os produtos que temos na câmara fria”, ele disse. Perfeito! Eu já havia trabalhado na cozinha de um outro hotel do mesmo proprietário na mesma cidade, então sabia o que deveria encontrar. O almoço seria servido às duas horas da tarde, então ele me pediu que chegasse às nove. Ou às dez.
Cheguei um pouco antes, por volta das sete horas. Na cozinha do hotel, apenas eu e uma senhora que lavava os pratos e, aparentemente, limpava sozinha todo o salão do restaurante do hotel. Um garçom chegaria minutos antes do almoço para servir os convidados.
_Não tem outro funcionário por aqui? Cozinheiros, ajudantes?– perguntei.
_Hoje não, estão todos de folga. O hotel está vazio. – ela disse, exibindo alegremente os dentes que ainda balançavam em sua boca.
Todos de folga. Todos. Foi neste momento que o dono do hotel entrou na cozinha, bocejando e logo tomando um gole do café que Dona Cirina, a amável e desdentada senhora, havia preparado minutos antes para nós.
_Edu! Chegou cedo! Que bom, porque preciso te dizer algumas coisas. Nossos convidados hoje são o prefeito e a primeira-dama, o vice-prefeito e a esposa e mais alguns secretários da cidade – e mais uma dúzia de puxa-sacos -, e eu espero realmente poder impressioná-los. Ah, e não serão dez pessoas, serão umas vinte, acho. Melhor cozinhar para trinta. Ah, a entrada, o almoço e os acompanhamentos podem ser servidos no buffet, mas preciso que você faça sobremesas individuais, tudo bem? Só mais uma coisa: não temos muita coisa na câmara fria, você precisa ir ao mercado e comprar tudo. Pode ir com carro do hotel, mas não podemos gastar muito, certo?
Certo. Entrada, almoço e acompanhamentos para trinta pessoas, entre elas o prefeito, o vice, os secretários e os respectivos puxa-sacos, trinta sobremesas individuais, sem nenhum ajudante, sem produtos na cozinha e sem muito dinheiro para gastar. O que poderia dar errado?
Eu precisava de alguma ideia, e rápido. Naquele tempo ainda não havia internet ou, se havia, ainda não era tão fácil acessá-la. Era necessário um computador e, naquela cozinha, eu não tinha um computador. Mas eu tinha alguns livros que eu sempre levava para trabalhos do tipo. E foi ali, num daqueles livros, que vi a chance de me tornar Robinho por um dia, dar uma pedalada genial e marcar um golaço: Boeuf Bourguignon!
Um clássico francês, relativamente fácil de fazer, com nome pomposo – bem ao gosto de nossos políticos – e que pode ser feito com um dos cortes de carne bovina mais baratos do mercado: o músculo! Apesar do nome francês de difícil pronúncia, o Boeuf Bourguignon nada mais é do que um ensopado onde a carne é cozida lentamente no vinho tinto. Como tempo não era um ingrediente possível naquele dia, precisaria apelar para a panela de pressão, o que, sinceramente, não seria problema nenhum e me daria ainda mais certeza de que minha carne ficaria super macia.
Escrevi em um papel a lista de compras do prato principal, tendo em mente as palavras do dono do hotel: “não podemos gastar muito, certo? ”. Alho, cebola, cenoura, alho poró, batatas, cogumelos Paris (Champignons, mas não em conserva), farinha de trigo, músculo bovino e bacon, porque você já deve ter ouvido a frase: “Tudo que é bom fica melhor com bacon”. O ingrediente mais caro da lista de compras seria o vinho tinto, mas, vejam só, a adega do hotel, ao contrário da câmera fria, estava bem abastecida. Ótimo, porque eu adoro cozinhar com vinho e às vezes até coloco um pouco na comida!

Brincadeiras à parte, eu já havia decidido o cardápio. Para entrada, algo bem simples: salada de folhas variadas, tomates cortados à francesa e um molho campanha (um vinagrete) caprichado. O Boeuf Bourguignon seria o prato principal, acompanhado de arroz branco e batatas assadas com ervas. Para a sobremesa decidi fazer um musse de maracujá bem simples, rápido de preparar e muito gostoso. Primeira missão cumprida: gastei pouco. Agora só faltava cozinhar tudo e arrebatar os convidados.
Comecei preparando as sobremesas e as coloquei na geladeira. Estariam perfeitas na hora de servir. Com toda a cozinha à disposição, acendi quase todas as bocas de fogão disponíveis, peguei meia dúzia de panelas e duas panelas de pressão e fiquei ali, dando voltas ao redor do fogão, mexendo nas panelas, preparando tudo e de olho no tempo. As batatas já estavam no forno, o arroz estava soltinho e saboroso, as folhas e tomates lavados e cortados.

O almoço correu sem percalços, apesar da correria. Dona Cirina foi um anjo enviado por São Benedito (o padroeiro dos cozinheiros), que me ajudou a cortar tudo e escreveu os displays do buffet com uma caligrafia que não vemos mais hoje em dia, dando um destaque ainda mais charmoso ao nome francês que, segundo ela, era um nome “metido à besta”. Ao final da refeição, o dono hotel e o prefeito foram nos cumprimentar na cozinha, encantados. O prefeito disse que já conhecia o prato, que o havia provado em Paris, que o prato estava igualzinho, e blá blá blá, e ti ti ti, mas tenho certeza de que ninguém naquela mesa sabia que se tratava de músculo bovino cozido. Gol. O que importava mesmo é que havia sido um sucesso, considerando-se o valor da gorda caixinha deixada à mesa e que eu, claro, não vi a cor. Acontece que a “turma” das cozinhas de hotéis e restaurantes costuma se encontrar pelos bares e assim fiquei sabendo a respeito da caixinha surrupiada. Eu não ia brigar com o garçom daquele almoço, mas, quando o convidei para tomar umas cervejas no boteco ele nem desconfiou que eu sumiria do local após uma bela quantidade de garrafas abertas e porções devoradas com gosto. Gol. Agora sim eu estava me sentindo o Robinho...

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